terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Arte e destino

Até quase minha fase adulta, eu nunca tinha sido feliz. Nem sabia o que era a felicidade. Parece estranho, não é? Não se conhecesse minha vida. Eu fui criado pela minha avó, que sempre me amou mas nunca soube, digamos, pôr isso em prática. Eu sei que ela sempre quis o melhor pra mim e tal, mas não sabia mais como lidar com uma criança. Uma criança órfã. Meus pais morreram quando eu tinha dois meses, em um acidente de barco, afogados. Eu nem lembro deles, os vi apenas por fotografias. Minha avó teve que ser cuidada por uma filha, irmã da minha mãe, por um tempo. Isso porque, logo após o acidente, ela não queria mais comer, tomar banho ou sair de casa. Muito menos cuidar de um bebê chorão, faminto e barulhento. Foi até aí que ela me contou. Eu só sei que continuou comigo e voltou a viver normalmente - ou o mais normal que sua realidade permitia. Cuidava de mim, me levava a escola, me buscava. Comparecia à reuniões e fazia tudo que tinha de ser feito. Mas não era minha mãe. Ela sabia disso, e eu também. Isso fazia diferença. Eu cresci sendo o "Filho da Avó" e sem receber muito amor, com apenas o necessário. O garoto das roupas engomadas, velhas. Mas não reclamo, sempre tive o que precisei. Quando cheguei na adolescência, meus objetivos eram simples e claros: sair da casa da minha avó e ser totalmente independente. Consegui isso com 17 anos, após ter ganho um concurso de arte. Ah, é. Sabia que tinha esquecido de alguma coisa. Eu desenho. Desde meus 6 anos, o papel e os lápis de cor são meus melhores amigos. Nada me deixa mais satisfeito do que rabiscar durante horas e ver o resultado - mesmo que não me agrade. Não me pergunte se isso é dom ou habilidade adquirida, eu não sei responder. O que eu sei é que a arte - o desenho, a pintura - faz parte de mim, está entranhada em meu ser, na minha essência. Talvez os jurados - ou seja lá o nome que têm as pessoas que analisaram os desenhos e escolheram o meu como o melhor são chamadas - tenham visto isso. A arte, a emoção, impregnadas no meu trabalho. Não apenas rabiscos precisos e bem definidos formando uma figura. Enfim, o fato é que me chamaram. Eu ganhei. E com dificuldade consegui o consentimento de minha avó - que já estava bem idosa -, para ir à capital e começar a estudar arte no mais prestigiado centro de arte do país. Sem pagar absolutamente nada, com todas as despesas pagas. De início, me senti muito deslocado naquele lugar. Pessoas ricas compartilhando suas experiências pela Europa, falando sobre o carro novo do pai, o seu carro novo. Estava prestes a voltar para o interior, de volta com minha avó, que se encontrava bem debilitada e vivia agora com a tia que anteriormente tinha cuidado dela.  Teria feito isso, não fosse pelo amizade que acabou florescendo entre mim e outro garoto da minha idade que também se sentia deslocado. Não por questões econômicas, longe disso. Ele era até mas rico que o resto dos nossos colegas. Mas se sentia tão desconfortável com tanto dinheiro e pressão vindos de seu pai, que o que mais queria era ser como eu. Nós nos entendemos muito bem, e viramos melhores amigos. Seguimos juntos na faculdade de Artes até o fim, um dando suporte ao outro, até que nossos caminhos se separaram. Ele foi trabalhar na área de design e comunicação visual da empresa de seu pai. E eu… bom, mais uma vez o destino me presenteou. Fui chamado, depois de um estágio, para trabalhar em Paris. A proposta era: Pintar quadros, ilustrar livros e ganhar muito dinheiro com isso. Eu aceitei. Dei adeus à minha vida aqui, à minha avó, ao meu tão querido amigo, e parti. Hoje tenho cinqüenta anos e sou dono do meu estúdio de arte aqui, em Paris. Sou satisfeito pessoal e profissionalmente. Eu agradeço muito a minha avó - que não mais está entre nós -, por ter feito o que fez e formado quem eu sou, e ao meu querido amigo, que atualmente é dono da empresa que anteriormente pertencera à seu pai, por ter me ajudado nos momentos tensos e enfrentado comigo algumas das peripécias da vida. E digo, com toda certeza, que tudo valeu a pena.

3 comentários:

  1. Amei o texto. Adorei a história de superação do garoto que podia ficar pobre o resto da vida, mas não, teve determinação e aliado ao seu talento conseguiu ser um sucesso!
    Só acho que com certeza ele parece ser meio infeliz no quesito emocional, pois parece ser uma pessoa sozinha. pelo menos ao meu ver.

    Mas parabéns, mais uma vez arrasou, Gabriel! <3

    ResponderExcluir
  2. Fiquei ainda mais encantada pelo seu texto pelo fato de eu gostar de desenhar, como o persongem. Linda estória, Gabriel.

    ResponderExcluir
  3. É lindo a maneira como você nos apresenta cenas, personagens, emoções e sonhos e a maneira agridoce em fazer com que eu me sentisse bem ao lado do menino, acompanhando suas dificuldades e mais do que isso, o seu amadurecimento e bater de asas.
    Adorei, Gabriel.

    ResponderExcluir